CEO da Dreams & Purpose e ex-diretor de Sustentabilidade do McDonalds na América Latina, o executivo quer ser uma ponte entre o campo e a cidade
Leonardo Lima é um executivo inquieto. Químico de formação, ele construiu uma sólida carreira no ambiente corporativo em grandes empresas como Ambev, Kraft Foods e Arcos Dorados (controladora da rede McDonalds na América Latina), mas sempre pensando fora da caixa.
Não por acaso, passou a participar de forma ativa e ser reconhecido como uma das vozes mais eloquentes nas discussões em torno da adoção de ações de sustentabilidade pelas companhias de diversos setores e se transformou em um importante interlocutor com entidades representativas do agronegócio.
Trabalhando em indústrias que compravam seus principais insumos de fornecedores do campo, ele educou seu olhar para as riquezas e as fragilidades do agro e desenvolveu relacionamento com diversos elos de suas cadeias produtivas.
Há cerca de dois anos ele deixou a Arcos Dorados, onde atuou por mais de 14 anos, chegando a diretor de Desenvolvimento Sustentável para a América Latina, para criar a Dreams & Purpose Consulting, empresa especializada no desenvolvimento de projetos envolvendo educação e conhecimento nas áreas social e ambiental. Recentemente, concluiu um amplo estudo sobre a atuação da Produzindo Certo, mensurando o impacto do trabalho realizado desde que ela foi criada, ainda como um programa dentro da ONG Aliança da Terra (a Produzindo Certo tornou-se uma empresa independente em 2019).
“Quando se leva ciência e conhecimento ao produtor rural, ele transforma a terra de uma maneira absolutamente fantástica”, afirma Lima. Conheça mais sobre a a visão dele na entrevista a seguir.
Você atuou em empresas de bens de consumo, em vários momentos observando de perto o agronegócio. Qual era sua visão do setor e como ela se transformou?
Nós que estamos nas cidades grandes brasileiras e do mundo somos consumidores diários de produtos que são oriundos de outras áreas e acabamos não tendo conhecimento dos sistemas de produção – como determinado produto é feito, quantas pessoas estão envolvidas, qual o nível de tecnologia empregado na produção, como são as cadeias produtivas. Existe uma riqueza de detalhes e uma complexidade que não se tem ideia. Conhecemos muito pouco do agro. Quando muito, podemos ler e ver vistos. Recebemos notícias do agro que não são muito positivas, não trazem o agro como realmente é. São exceções que acabam se tornando referências do agro. Era uma grande preocupação minha não permitir que essa percepção errônea se transferisse para as empresas.
Você também tinha uma visão anterior negativa do setor?
Não, mas talvez eu seja exceção, não a regra. Consumidores urbanos são bombardeados o tempo todo. Mesmo quem não tinha visão errônea, acaba ficando influenciado. Desde jovem tive a oportunidade de conhecer o lado positivo e, ao longo da minha carreira, tive chance de ajudar a desenvolver pequenos agricultores. Em Cuzco [no Peru], desenvolvi um projeto para produzir alface americana para o McDonalds da cidade com agricultores que nem falavam espanhol. Eram muito rudes, mas pediam: “Traga conhecimento que eu traduzo em produtos”. Era um microcosmo, agricultura feita em poucos metros quadrados, mas foi uma clara demonstração de que quando se leva ciência e conhecimento, o agricultor transforma a terra de uma maneira absolutamente fantástica.
Como foi essa transformação?
Para você ter uma ideia, esses agricultores produziam, quando muito, uma safra por ano, porque tinha geada e uma série de intempéries e pragas. Fizemos estufas ou transformamos as que eles usavam para produzir flores, mas não faziam de forma adequada. Conseguimos que eles obtivessem quatro safras por ano e decuplicassem seus rendimentos. Eles atingiram a mesma qualidade exigida pelas especificações globais do McDonalds.
Outra coisa que adoro no campo é a sucessão, famílias inteiras trazendo a herança cultural do campo com seus sucessores. Isso você conhece quando visita o campo. Mas é uma minoria de pessoas que, por sorte, consegue visitar. O que vi também no campo são trabalhos excelentes, uma preocupação de equilíbrio entre produção e preservação.
“Uma coisa que adoro no campo é a sucessão, família inteiras trazendo a herança cultural do campo com seus sucessores. Isso você conhece quando visita o campo”
Esse é visto, nas cidades, como o grande embate do campo.
Há esse embate errôneo. Temos que ter a preocupação de diferenciar entre o que é lei e o que é necessário. Já sabemos que não é necessário desmatamento para que se produza mais. Temos milhares e milhares de hectares que podem ser recuperados e são mais do que suficientes para produzirmos os alimentos que necessitamos.
Dentro das empresas, a pressão do consumidor em torno da forma como os alimentos são produzidos é real? Elas se importam com essa pressão?
Sinceramente, ainda falta muito para que os consumidores, de uma forma massiva, pleiteiem ou exijam isso das empresas. O consumidor consciente ainda é um nicho, mas sem força de pressão. A população lê e, em pesquisas, vai responder que quer produtos produzidos de forma mais responsável, mas não vai refletir isso em suas escolhas de compra. Se o consumidor do supermercado, das redes de restaurantes, fosse realmente consciente, nós já teríamos um avanço mais rápido nas questões de sustentabilidade.
Mas já existe uma pressão sobre os produtores vindo das empresas.
Se hoje estamos avançando nessa arena, agora com o advento do ESG, com o mundo financeiro exigindo mais sustentabilidade das empresas, é muito mais por apelos externos, de consumidores mais conscientes como o europeu. Essa pressão feita sobre as empresas na Europa acaba se disseminando pelo mundo inteiro, já que elas estão presentes em muitos países. O consumidor brasileiro ainda não consegue distinguir o que é produto sustentável. Como ele não consegue entender o valor agregado, não vai pagar mais por isso.
As empresas têm a percepção de que precisam investir para levar conhecimento e eventualmente pagar mais por uma produção responsável?
Varia muito. Quando você tem empresas que estão expostas ao mercado de capitais e à exportação para mercados mais exigentes, elas, querendo ou não, vão se adequar a essa onda que é global. O mundo financeiro já percebeu que resultados podem ser comprometidos por eventos climáticos e sociais que são imprevisíveis. Nesse mundo, as empresas têm sentido muita pressão, não de ONGS, mas pelo mercado. E elas transferem essa pressão para a sua cadeia de valor, que muitas vezes é global. Já há empresas com CEOs com visão não só de curto prazo, que observaram que esse movimento está diretamente ligado à perenidade das empresas. Mas a grande maioria ainda nem sabe do que se trata esse movimento. Como não sentem pressão, não fazem nada.
Quando transferida ao produtor, essa pressão não corre risco de gerar exclusão se não for acompanhada de programas de incentivo para adequação às exigências socioambientais?
Com certeza. Eu diria que é uma desinteligência das empresas que não veem essa questão de maneira holística. Esse tipo de visão de eliminar quem não está adequado é um tiro no pé da própria empresa. Para se adequar, o produtor precisa não só do dinheiro, mas de tempo, porque muitas vezes são mudanças culturais, e de conhecimento. Ao começar a eliminar fornecedores de sua cadeia de valor porque eles não estão atendendo a uma norma o que acaba acontecendo? Sobram menos fornecedores e menos disponibilidade daquele determinado insumo. Isso gera uma disputa maior entre todos os que compram daquele fornecedor qualificado. E então o que acontece é aumento de custos. Então, se você quer se proteger, precisa entender que o produtor precisa de apoio para atingir esse desenvolvimento. Ele precisa conhecer a norma, que muitas vezes não conhece. As empresas têm que educá-lo, fornecer ferramentas e depois acompanhá-lo. Muitas vezes esses fornecedores são tão ligados a essa empresa, têm uma relação tão estreita, que no afã de atendê-la eles ultrapassam os limites. Querem fazer tão bem feito que gastam mais e, depois, querem colocar preço adicional no seu produto. A maneira correta de agir é discutir com o fornecedor quais são os tempos necessários, os custos incluídos. Isso é discutido em comum acordo, se vai haver algum impacto no custo daquele insumo, se esse custo pode ser diluído por todos os clientes daquele fornecedor. Essa é a maneira mais positiva de promovermos as alterações necessárias nas cadeias de valor.
Ou seja, a empresa que não investir nesse relacionamento com o fornecedor no primeiro momento, depois pode acabar pagando mais caro pelo insumo que está buscando?
Totalmente, porque é possível estimar esse investimento feito sob o teu controle, quando você estabelece um plano de desenvolvimento com a sua cadeia de fornecedores. Quando você tem rupturas nas cadeias de abastecimento e os preços disparam, esse é um custo que você não previu e ele impacta automaticamente no seu resultado final.
Você atuou por algum tempo como diretor do GTPS (Grupo de Trabalho pela Pecuária Sustentável), um organismo que reúne desde pecuaristas até empresas na outra ponta da cadeia. É possível perceber ali um movimento real no sentido de educar e incluir os produtores rurais?
O GTPS representa, para mim, um sistema complexo, mas excelente para exercitar a democracia. Ali você tem seis setores da cadeia de valor do agronegócio. Só não tem o governo sentado, mas tem indústria, bancos, produtores, ONGs, cada um com a sua pauta. Todos têm de se sentar a uma mesa e chegar a um consenso. Esse consenso às vezes não é totalmente agradável a um, dois atores que estão ali, mas representa o que é possível naquele momento. O GTPS pode não ter a velocidade de mudanças desejado, mas é um fórum de discussão real, seguro, onde estão todos os que deveriam estar presentes. Todos sabem o que desejam e tratam com pessoas que querem encontrar soluções. Ali você tem vários setores que podem aportar recursos no desenvolvimento de produtores e uma grande forma de os produtores entenderem por que são pressionados.
Recentemente sua empresa, a Dreams & Purpose, realizou um estudo de impacto das ações da Produzindo Certo, um tipo de trabalho que não se vê com tanta frequência. Como você avalia esse projeto?
Foi um trabalho muito interessante e de muito aprendizado. O primeiro aprendizado foi a transformação de números em resultados visíveis de impacto. Durante todos os anos de atuação da Produzindo Certo foram produzidos milhares e milhares de análises e dados e talvez eles nunca tivessem antes tido a oportunidade de vê-los de uma forma holística. Nos impressionou muito, por exemplo, a quantidade de soja certificada registrada dentro do sistema da Produzindo Certo, os avanços que foram produzidos através da capacitação técnica dos produtores cadastrados na plataforma, os estoques de carbono que estão nas áreas monitoradas… Nós tivemos também a oportunidade de estudar os impactos nos municípios, através de informações públicas. Outro aprendizado muito grande que foi gerado nesse trabalho é a riqueza de informações públicas existentes que, se somadas às informações existentes nas empresas, proporcionam conclusões muito interessantes de onde estão as oportunidades de desenvolvimento, onde estão os riscos, onde, eventualmente, estão produtores excluídos das cadeias de valor. Dou meus parabéns à Produzindo Certo pelo trabalho, que muitas vezes é de formiguinha. Essa assistência técnica que fornece aos produtores é fundamental e produz resultados muito bons, como ficou evidenciado no levantamento que fizemos.
A Aline Locks, CEO da Produzindo Certo, publicou há algumas semanas um artigo em que defende a necessidade da ampliação da assistência técnica em sustentabilidade. Ela defende que é preciso “enverdecer” o técnico rural para levar ao produtor conhecimento ambiental e social. Como você avalia essa questão?
A gente tem que quebrar conceitos de que cada pessoa representa uma determinada área de conhecimento. Sempre digo que a nossa função hoje, na gestão das pessoas que trabalham conosco, é muito mais complexa, porque a não teremos mais aquelas atividades estanques, em que uma pessoa produzia, outra controlava, outra vendia. Ou seja, profissionais quase que puristas em sua definição de cargo. Atualmente, uma pessoa que está no campo ou uma pessoa que está numa organização de meio ambiente, tem que entender de meio ambiente e tem que entender de produção. Se eles não entendem o que o outro está fazendo, gera uma guerra estúpida de narrativas e conflitos que são totalmente improdutivos e negativos. Então, o extensionista rural precisa estar preparado e quem está no campo, ao receber uma assistência técnica, tem de estar preparado não apenas para aumentar a produtividade naquela propriedade, mas também para entender que ele gera impactos naquela atividade e que o meio ambiente não deve ser visto como um inimigo da produção. Hoje o produtor tem de estar atento a mais itens do que tinha no passado. Nós temos de explicar para ele que é que o mundo mudou, porque é que agora passou a ser importante algo que antes ele não via como tal.
Você está sempre transitando pelo agro. Como a Dreams pode contribuir para o setor, embora não tenha foco trabalhar com ele?
Eu fundei a Dreams porque percebi que quando a gente tem conflitos ou situações de intransigência, o que a gente enfrenta é a falta de consciência do ser humano para o mundo que nós estamos vivendo. É um mundo totalmente diferente, que muda a cada dia. Agora, por exemplo, a gente tem um software da Microsoft de inteligência artificial que já permite que a gente converse e faça perguntas a ele. Isso não tinha há algumas semanas. E ele chega e já está revolucionando a forma de a gente pensar e enxergar as coisas. Então, o meu foco na Dreams, através da educação e do conhecimento, é aumentar o nível de consciência do ser humano. Eu transito em qualquer área, porque na verdade é preciso abrir o ser humano para que ele entenda o que está acontecendo e não seja antagônico, porque senão o tsunami da mudança vai passar por ele e ele será mais um a ser varrido. Meu propósito é aumentar o nível de consciência desde os líderes até aqueles que são impactados pelos líderes, em toda a gama da sociedade e das organizações em geral. Vou continuar, com muito prazer, tendo contato com o campo. É necessário levar consciência e trazer consciência do campo para a cidade. Eu, claramente, me vejo como uma ponte entre esse mundo exterior, que eu passei a conhecer muito melhor, e o mundo corporativo em que eu vivi a minha vida inteira. E eu vi que muitas vezes os projetos que são apresentados ao mundo corporativo vêm com uma linguagem que este mundo não entende. Eu pretendo decodificar as linguagens, decodificar projetos.