Como representantes de vários elos da cadeia pretendem criar um mercado de créditos incentivar a produção do couro sustentável que movimenta uma indústria trilionária
Um objetivo comum reuniu, nos últimos meses, os diversos elos da cadeia produtiva de couros naturais. Liderados pela Mesa Redonda Do Couro Responsável (Responsible Leather Round Table – RLRT), representantes de pecuaristas, frigoríficos, curtumes e das indústrias de vestuário, calçados e de outros produtos que utilizam a matéria prima buscam novas formas de valorizar a produção sustentável do couro em todo o mundo. Dono do maior rebanho bovino comercial do mundo, o Brasil tem papel importante nas discussões da RLRT e pode se beneficiar com algumas das ações que começam a ser postas em prática pela entidade.
Uma delas é a Leather Impact Accelerator (LIA), iniciativa com objetivo de reunir um arcabouço de práticas sustentáveis a serem adotadas na produção. Lançado em janeiro, um projeto piloto da LIA deve durar três ano e viabilizar que sejam testadas ideias como a criação de um mercado de créditos de couro sustentável. Pensado para funcionar em moldes similares ao do mercado de carbono, ele permitiria que indústrias que utilizam couro na fabricação de seus produtos adquiram créditos de pecuaristas que criam gado de acordo com as melhores práticas socioambientais, permitindo que o couro resultante do abate dos bovinos seja considerado sustentável.
“A ideia do mercado de crédito é criar uma solução de sustentabilidade para as empresas que consomem couro”, afirma Charton Locks, diretor de operações da Produzindo certo, que participa das discussões sobre o tema na RLRT. “Elas não têm como rastrear cada peça que recebem dos curtumes, pois seria um processo muito complexo e caro. Mas poderiam fazer a compensação, comprando créditos e ajudando um pecuarista a continuar produzindo de forma sustentável, mesmo que o couro que esteja chegando na sua fábrica não seja desse produtor”. Para Locks, se o mercado abraçasse essa solução em larga escala, teríamos uma solução em que a indústria teria grande impacto no incentivo à pecuária responsável. Afinal, há muito dinheiro em jogo. A indústria do couro, segundo dados da RLRT, movimenta US$ 40 bilhões ao ano. As empresas envolvidas com a Responsible Leather Initiative, juntas, tem valor de mercado superior a US$ 1,2 trilhão.
O modelo pode trazer outro benefício direto ao produtor, que é a geração de valor pelo couro. Atualmente, o couro representa menos de 5% do valor econômico de um animal que chega ao frigorífico – 95% desse valor é obtido com o processamento do bovino para a indústria de alimentos. Por esse motivo, produtores e mesmo os frigoríficos dão pouca ou quase nenhuma importância ao produto, muitas vezes descartado. Assim, ao invés de gerar riqueza, gera resíduos e impactos ambientais.
Ao mesmo tempo, a indústria sofre pressão crescente de consumidor e de investidores para deixar de utilizar couro natural, já que em geral não consegue rastrear toda a produção de uma peça, do nascimento do bezerro ao varejo. Por conta dessas pressões, o produto perdeu ainda mais valor, sendo vilanizado por parte do mercado.
O quadro é ainda mais sensível quando o couro provém de rebanhos oriundos de regiões com focos de desmatamento, como a Amazônia. Empresas de vestuário e calçados como Timberland e Gucci, por exemplo, já anunciaram que não compram mais couro brasileiro em função de não poderem garantir que os animais abatidos têm ou não relação com áreas de desmatamento ilegal. Cria-se, assim, um círculo vicioso: o produto não vende, os frigoríficos descartam porque não tem demanda e o produtor não se esforça para produzir couro de boa qualidade.
O RESGATE DO COURO
“O couro natural precisa ser resgatado”, afirma Locks. “Existem, é verdade, ilegalidades e crimes ambientais associados a parte da produção, mas parar de consumir esse produto não é a solução do problema. Além disso, produzir couro sintético a partir do petróleo também não é uma solução ambientalmente amigável. A pecuária vai continuar existindo. Sendo feita de maneira adequada, vai gerar um couro natural muito mais sustentável do que o sintético”.
O resgate do couro natural começa justamente pela valorização do produtor responsável. Com muitos elos na cadeia entre o campo e o consumidor, mesmo que a indústria pagasse um preço extra pelo couro sustentável, esse excedente se perderia no caminho e o benefício seria mínimo na ponta inicial. A proposta dos créditos passa pela conexão direta entre as duas extremidades. O pecuarista seria auditado e geraria créditos a partir do número de peças produzidas. Ele comercializaria esses créditos com as indústrias em um mercado regulado e ganharia o valor integral, sem intermediários. Com isso, teria incentivo para adequar-se cada vez mais às exigências socioambientais.
“No futuro queremos que as fazendas transacionem em uma plataforma própria. Mas eles precisam de apoio e assistência técnica em sustentabilidade para que eles cheguem nesse nível e passem a receber uma remuneração por conta disso. Essa é a proposta de valor da Produzindo Certo: transformar cadeias e fazer o link entre empresas e produtores responsáveis”, afirma Locks.
Um dos gargalos do modelo, segundo Locks, seria explicar para a sociedade o que é crédito de sustentabilidade. A própria indústria não poderia dizer na embalagem que seu produto é feito com matéria prima sustentável. Ao invés disso, explicaria que a empresa fomenta a adoção de boas práticas e, com a compensação dos créditos, cumpre sua obrigação de limpar a sua pegada socioambiental.
O CASO VEJA
A complexidade de se obter couro de fonte sustentável é um desafio que exige abordagens diferentes da de outras cadeias. “Para outros produtos, como algodão e borracha, conseguimos negociar diretamente com cooperativas e associações de produtores familiares e os valores que pagamos, duas a três vezes maiores que os do mercado de commodities, fazem diferença para eles”, afirma Beto Bina, responsável pela gestão das cadeias de fornecimento no Brasil da fabricante de calçados francesa Veja, que se tornou uma coqueluche de consumidores conscientes em todo o mundo – no Brasil, seus produtos são comercializados com a marca Vert. “Mas o couro é um animal mais complexo”.
Preocupada em buscar matéria prima de origem rastreada, a empresa mergulhou nas cadeias produtivas de couro no País e descobriu que, na maioria das regiões, é praticamente impossível rastrear completamente o gado. “Tínhamos de acreditar no que o firgorífico dizia, mas ficávamos muito às cegas sobre se não vem de área de desmatamento ilegal na Amazônia, se realmente é feito o manejo sustentável e coisas do gênero”.
Há mais de um ano e meio Bina se dedica à formação de uma cadeia totalmente rastreada. Para metade do seu consumo, encontrou uma solução no Rio Grande do Sul, com o desenvolvimento de um projeto em conjunto com a organização Estâncias Gaúchas, que fez uma curadoria de fazendas com ciclo completo e usam prioritariamente campo nativo. No ano passado, o projeto identificou as propriedades no bioma Pampa e atingiu as metas desejadas. “Primeiro, temos a garantia de que não vem de desmatamento ilegal”, diz Bina. “Mas o mais legal é que o Pampa parece que foi desenhado para a criação de gado, com gramíneas rasteiras, muita biodiversidade e o gado totalmente adaptado.”
Para a outra metade do fornecimento, obtida de frigoríficos de São Paulo e Goiás, a mesma lógica não se aplica. “Temos garantias do frigorífico, mas sabemos que tem margem de erro”, diz. “Isso representa um risco reputacional muito grande para nós. Seria negligência pegar o certificado do frigorífico e lavar as mãos”, diz Bina. A meta da Veja é ter toda a produção de couros certificada até o fim de 2021, mas ele sabe que não é tarefa fácil. “O couro representa muito pouco do valor do animal. O produtor não pensa no valor do couro.” É essa lógica que a iniciativa do mercado de crédito pretende reverter.
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