Ao oferecer incentivos financeiros para a produção responsável, o governo atende a uma antiga demanda do setor. Mas há questões operacionais que precisam ser encaradas para que isso realmente saia do papel
O Plano Safra é um farol para a agropecuária brasileira. É esperado com expectativa por produtores rurais e empresas porque, através dele, o governo federal costuma enviar sinais de como pretende se relacionar com o setor e de que forma vai executar sua política agrícola.
O indicador mais visível são os recursos disponibilizados – e nesse sentido, a versão 2023/24 do Plano Safra, anunciada nesta semana, pode ser vista como positiva. Somados os valores divulgados para a chamada agricultura empresarial (que engloba grandes e médios produtores) e para a familiar, os números superam R$ 440 bilhões, um aumento superior a 30% em relação ao ano anterior.
Tão importante quanto o montante é sua distribuição e, sobretudo, sua operacionalização. O atual governo carimbou no Plano Safra a marca “sustentável” e enfatizou esse ponto nos discursos do evento de lançamento. Apoiou a comunicação no fato de ter, pela primeira vez, aberto a possibilidade de conceder crédito em condições especiais aos agropecuaristas que utilizam, em suas propriedades, boas práticas produtivas e socioambientais alinhadas a políticas de redução do desmatamento e das emissões de carbono.
Trata-se, de fato, de um marco na história dos Planos Safra e isso merece reconhecimento. Mas é preciso tempo para se entender o real impacto do que, por enquanto, está só no papel. A proposta apresentada pelo governo prevê a redução será de 0,5 ponto percentual na taxa de juros de custeio para os produtores rurais que possuírem o Cadastro Ambiental Rural (CAR) analisado, em uma das seguintes condições: 1) em Programa de Regularização Ambiental (PRA), 2) sem passivo ambiental ou 3) passível de emissão de cota de reserva ambiental.
De acordo com o proposto, o produtor pode ainda acumular mais um desconto de 0,5% se adotar práticas de produção agropecuária consideradas mais sustentáveis, como: produção orgânica ou agroecológica; bioinsumos; tratamento de dejetos da suinocultura; pó de rocha e calcário; energia renovável na avicultura; rebanho bovino rastreado; e certificação de sustentabilidade.
São descontos significativos e essa vinculação tem um mérito importante. O crédito é um insumo inerente a todos os produtores rurais. Assim, criar um incentivo através dele tem um efeito poderoso, criando um terreno muito fértil para promover mudanças.
O Plano Safra, assim, atende a uma antiga demanda do setor, que sempre bate na tecla de que a solução para desmatamento e adoção de práticas sustentáveis precisa ter como base a ótica econômica. O acesso a um crédito diferenciado é, sem dúvida, um instrumento nesse sentido.
Há um enorme porém por trás dessa medida positiva: o CAR. Ao atrelar o benefício ao CAR analisado, o governo (talvez de forma não intencional) restringiu a aplicação desses descontos a um contingente mínimo de produtores rurais.
Observando os dados existentes sobre o cadastro pode-se entender o apertado gargalo por onde esse benefício tem de passar. Até o final de 2022, segundo dados divulgados pelo governo já são 6,9 milhões de imóveis rurais inscritos no CAR. Destes, no entanto, apenas 12% tiveram sua análise iniciada. E somente 2%, ou menos de 140 mil, finalizados, de acordo com estudo divulgado pela Climate Policy Initiative.
É importante que se diga que, nesse processo, os produtores rurais fizeram sua parte. E, se agora podem ficar de fora desse benefício, é por conta da morosidade os órgãos públicos (leia-se secretarias estaduais do Meio Ambiente) na realização dessas análises. Apenas dois estados (São Paulo e Amapá), por exemplo, contam com sistemas de análise dinamizada feita por computador. Em todos os demais, o trabalho é manual, realizado por equipe técnica.
Se por um lado tropeça na barreira da ineficiência estatal, por outro, ao colocar o CAR no coração dessa questão, o governo reforça a importância desse instrumento de política ambiental e cria uma enorme pressão para que os órgãos responsáveis tragam mais agilidade aos processos de análise. Uma política pública, assim, pode contribuir para a definitiva implementação de outra.
Surgem, então, outras questões essenciais que não podem ser abafadas:
– Não existe uma regra clara para indicar como as análises do CAR serão priorizadas. Sem ela, brota-se um ambiente de insegurança e receio sobre a possibilidade de “furar a fila”, uma vez que ter o CAR analisado pode tornar-se sinônimo de economia financeira.
– Os mecanismos de verificação das informações e das boas práticas para acessar o desconto não foram apresentados. Como o produtor poderá demonstrar as práticas sustentáveis junto aos bancos?
Não é difícil imaginar que grandes produtores, com maior capacidade técnica e financeira, podem sair em vantagem nessa corrida pelo dinheiro mais barato. A sustentabilidade, no entanto, deve ser buscada e incentivada em todos os níveis.
Temos defendido, neste espaço, a criação de instrumentos de democratização do acesso ao conhecimento e a recursos que permitam ao pequeno produtor adotar também as melhores práticas – e, sobretudo, ganhar com isso.
A versão do Plano Safra para agricultura familiar, é verdade, também traz taxas de juros mais baixas para o custeio de produtores que estejam em conformidade com essas exigências. Mas, da mesma forma que na empresarial, faltam informações de como isso será operacionalizado.
Temos tecnologia e conhecimento para uma agricultura sustentável, mas para ter adoção é necessário haver capacitação e financiamento. São pontos intrinsicamente conectados.
O caminho foi aberto e temos agora, a partir das discussões em torno da operacionalização desse Plano Safra, a oportunidade de nos aprofundar nas questões práticas. Teremos muitos desafios pela frente, mas um grande passo foi dado. Cabe uma união de todos – empresas, governo, produtores, tecnologias – para que possamos avançar e torná-lo efetivamente sustentável.