Estatísticas costumam ser frias. Algumas delas, no entanto, nos causam calafrios na alma. É o que acontece quando se depara com números como o da pesquisa desenvolvida pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), divulgada recentemente. Ela aponta que mais de 33 milhões de brasileiros passam fome no Brasil atualmente. Ainda de acordo com a pesquisa, mais da metade da população brasileira (58,7%) convive com a insegurança alimentar em algum grau.
Ao deparar com dados tão dramáticos, não é de se surpreender que muitos os relacionem com a produção de alimentos no Brasil. E, então, vislumbrem uma aparente contradição. Nosso campo tão produtivo e louvado não teria condições de atender à demanda da população? Estaríamos excessivamente focados na produção para exportação, relegando o consumo interno ao descaso?
Trata-se de uma associação compreensível para quem olha o campo de longe. Cabe a quem olha de perto esclarecer que a realidade da produção agropecuária, que nos acostumamos a chamar de agro. O primeiro esclarecimento é o de que a insegurança alimentar nem sempre é provocada pela falta de alimentos, mas sobretudo pela falta de acesso a eles.
O segundo é demonstrar que o agro brasileiro não é um ambiente único. O Brasil é, sim um país de muitos agros: o que exporta, o que gera empregos e riqueza, o que sustenta, o que alimenta. Eles, de certa forma, refletem a complexidade do Brasil e a diferença no nível de oportunidades.
Temos no Brasil um agro próspero e um agro com fome – fome de conhecimento, de recursos, de empatia dos mercados. Grandes e médias propriedades, focadas sobretudo na produção de grãos, têm, de fato, maior acesso a crédito, tecnologia e assistência técnica. Quando se fala da oferta de alimentos para a mesa dos lares brasileiros, porém, temos outro quadro. Ela provém, em grande parte, de estabelecimentos rurais de pequeno porte e produção diversificada.
Segundo o Censo Agropecuário do Brasil, a agricultura familiar – carente de recursos financeiros e técnicos – responde por cerca de 70% da produção de feijão, 34% do arroz, 87% da mandioca. Quando se fala de proteínas, são essas propriedades a origem de 60% do leite, 59% do rebanho suíno, 50% das aves e 30% dos bovinos.
É nas pequenas propriedades que se encontra um dos maiores gargalos da produção agrícola no Brasil. É preciso inserir esses produtores no mundo contemporâneo, dando acesso a condições de conhecimento e crédito. Não basta apenas um, eles precisam de ambos. Não se produz alimentos sem dinheiro. Não se produz alimentos sem conhecimento. E não se faz agricultura responsável sem tudo isso mais incentivos.
A agricultura familiar é um negócio tocado por empreendedores com as mãos e os pés sujos de barro. Mas tem também uma importante função social e, como tal, deveria estar no radar das políticas de ESG de empresas e bancos com foco no agronegócio. Eles também são cobrados pela preservação ambiental em suas fazendas, também devem respeito a uma complexa legislação que muitas vezes não cumprem porque não entendem.
Para que eles ajudem a combater a fome – produzindo mais, com custos mais baixos e de forma responsável – precisam de redes de apoio que combinem programas de assistência técnica a políticas de crédito incentivadas, que valorizem inclusive seus ativos ambientais, hoje sequer aceitos como garantias para crédito.
Grandes, médios e pequenos produtores enfrentam hoje um cenário de incerteza, provocado pela elevação sem precedentes dos custos de produção. Aqueles que produzem commodities ainda conseguem compensá-los com a alta desses produtos no mercado internacional. Quem ajuda a encher a cesta básica, porém, não tem essa saída. Dependem muitas vezes de programas estatais, cujas verbas são sistematicamente reduzidas. Se permanecerem invisíveis, engrossarão os maus números na próxima pesquisa.
Artigo publicado originalmente na coletânea “Vencendo a Fome”, organizada pelo Instituto Capitalismo Consciente Brasil. Para acessar, clique aqui.