O ano da virada da pecuária - Produzindo Certo
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O ano da virada da pecuária

Por que 2022 pode se tornar um divisor de águas na imagem da atividade

Você, pecuarista, sabe bem do que vamos falar. Em algum momento alguém já te questionou, já te cobrou, até mesmo já te pressionou a respeito da forma como você produz. Muitas vezes a cobrança foi injusta, imputando a você responsabilidades que estão fora da sua alçada. Sabe-se, por exemplo, que o desmatamento ilegal ocorre sobretudo em áreas públicas e que a grande maioria dos pecuaristas atua dentro dos limites impostos pela legislação no que se refere à manutenção de reservas dentro de suas propriedades. Ainda assim, a pecuária brasileira como um todo acaba tendo sua imagem associada à ação da minoria – e paga um preço por isso.

O debate muitas vezes é acalorado e os holofotes sempre acabam voltados para a produção brasileira, sobretudo na região da Amazônia, quando se discute o impacto da agropecuária sobre o meio ambiente e o clima. A União Europeia, por exemplo, discute uma proposta para banir definitivamente a compra de carne e soja de áreas desmatadas – e indicou o Brasil como um dos alvos prioritários dessa ação.

Em 2022, a luz jogada sobre o setor estará ainda mais forte, sobretudo depois de um grupo relevante de empresas do agronegócio assumir, em escala global, compromissos de neutralidade em seus balanços de carbono. A questão é: por que, ao invés de termos a visão ofuscada por essa luz, não aproveitar a exposição para mudar o jogo a nosso favor?

A conjuntura, não se engane, é favorável à virada da pecuária. A cobrança internacional nos coloca contra a parede? Entenda como necessidade de agir. A pressão que o consumidor exerce hoje sobre a indústria de alimentos se reflete em toda a sua cadeia de fornecimento, inclusive porteira adentro. Requisitos como certificações socioambientais, rastreabilidade de seus produtos, desmatamento zero, manejo dentro de bons padrões de bem-estar animal já chegaram a  boa parte das fazendas do Brasil.

O pecuarista não estará, no entanto, sozinho nessa corrida para atender a tantas demandas. Os frigoríficos que compram seus animais também estão pressionados. Eles terão de agir e isso gera uma oportunidade. Quando marcas como JBS, Marfrig, Minerva, BRF (apenas para citar alguns gigantes brasileiros com força global no mercado de proteína animal) se comprometem a tornar suas operações neutras em emissões de carbono, elas indiretamente indicam que terão de investir em suas cadeias de fornecimento. E o prazo para que façam isso já começou a contar…

Pressão com apoio

Para poder entregar a maior transparência que prometeram ao mercado, as grandes empresas agroindustriais terão de demonstrar de que forma estão trabalhando junto aos produtores rurais. Não pode ser um jogo de exclusão, um BBB que joga pecuaristas com alguma inconformidade socioambiental em um paredão. Isso, a longo prazo seria economicamente inviável.

Para provar que são Net Zero, elas terão de medir a pegada de carbono de cada um dos seus processos, inclusive de seus fornecedores. Na hora de fazer o balanço das emissões, tudo aquilo que não conseguirem mitigar na sua própria cadeia terão de compensar através da compra de créditos de carbono. E isso tem seu preço, financeiro e de imagem.

Assim, investir no produtor pode ser a melhor estratégia. Ao levar ao pecuarista a demanda acompanhada de uma proposta que considere o apoio técnico para garantir o sequestro de carbono no processo produtivo, e uma proposta de valorização financeira dessa produção, a indústria estará investindo em transformar uma realidade, o que tem mais impacto do que apenas comprar créditos.

A pressão começa no consumidor

As marcas sentem o calor que vem do mercado. Empresas globais precisam ouvir consumidores em todo o mundo e, para isso, utilizam pesquisas que apontam tendências que precisam ser consideradas por seus gestores na tomada de decisões. Uma delas, o estudo “Global Consumer Trends for 2022“, da consultoria global de inteligência de mercado Mintel, apontou que o compromisso ético das marcas frente a tópicos controversos é um dos pontos mais valorizados por entrevistados em vários países (inclusive o Brasil). Confira alguns insights destacados pelo site The Shift:

  •  Pelo menos 68% dos consumidores brasileiros disseram que investigam as práticas de negócios das empresas com as quais querem ter alguma interação. É preciso ser transparente com as fraquezas e ter clareza sobre as informações de produtos e serviços.
     
  •  Marcas sustentáveis ganham pontos. Uma das tendências aqui é o fortalecimento de métricas padronizadas de sustentabilidade para diferentes verticais.

O agronegócio está cada vez mais atento a questões como essas e as levará para as fazendas. Mais uma vez, pressão com apoio.

Um bom negócio

O efeito transformador que pode ser gerado pela pecuária brasileira é imenso. Apenas com a recuperação de pastagens degradadas, por exemplo, os pecuaristas poderiam agregar um contingente adicional de animais a suas áreas, evitando novos desmatamentos, gerando mais renda e retendo carbono. O IBGE estima que existem 100 milhões de hectares com algum nível de degradação no Brasil.  Se 12,2 milhões desse total fossem recuperados, segundo estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão vinculado ao Ministério da Economia, e pelo World Resources Institute (WRI), seria possível aumentar em 17,7 milhões o número de animais do rebanho bovino brasileiro, hoje na casa de 214 milhões de cabeças. Isso representaria o equivalente a 1,5 vez o rebanho bovino do Uruguai.

No terreno do mercado de carbono e do pagamento por serviços ambientais, o impacto pode ser igualmente impressionante. Um experimento realizado pela Embrapa Pecuária Sudeste avaliou o potencial de sequestro de carbono por meio de árvores com a adoção de sistemas integrados de pecuária e floresta e de lavoura-precuária-floresta. No estudo, a média de carbono acumulado na biomassa por hectare foi de 65 toneladas ao longo de oito anos. Ou seja, a cada ano, o componente arbóreo retém, em média, oito toneladas do elemento por hectare. Para se ter uma ideia do valor, cada tonelada de carbono no mercado voluntário está avaliada em cerca de US$ 10 (o equivalente a R$ 55 no câmbio oficial da sexta-feira 21). Assim, poderia gerar uma renda adicional de mais de R$ 440 por hectare por ano ao produtor.

“Ao usar o manejo sustentável, você está favorecendo e provendo serviços ambientais. E é disso que a gente está falando: de incentivar o produtor a sair de uma condição de área degradada e incentivá-lo a fazer essa mudança de comportamento”, afirmou a pesquisadora Fabiana Aquino, da Embrapa Cerrados, em entrevista ao programa Giro do Boi em que comentou como o pagamento de serviços ambientais pode incentivar pecuaristas a recuperarem as pastagens em suas propriedades.

Os caubóis da Amazônia

A complexa questão da pecuária na Amazônia merece reflexões que vão além da simples observação ambiental. Para quem quer entender um pouco mais sobre o tema, uma leitura sugerida é uma entrevista recente do antropólogo Jeffrey Hoelle, professor da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, ao jornalista Fabiano Maisonnave, da Folha de S. Paulo. Autor do livro “Caubóis da Floresta: O Crescimento da Pecuária e a Cultura de Gado na Amazônia Brasileira” (clique para acessar a edição eletrônica da obra), Hoelle dedicou anos ao estudo da atividade na região sobre a ótica dos habitantes da Amazônia e traz um olhar instigante e original.

“O meu desafio como antropólogo nesses anos foi mergulhar para compreender uma realidade que em certa medida tem a ver com minhas raízes de cidadão americano do Texas. Não parti do pressuposto de que os fazendeiros ou pecuaristas são apenas bandidos, vilões, devastadores do meio ambiente”, diz na entrevista.