O uso de pesticidas na agricultura brasileira está no centro de um debate que envolve toda a sociedade e o futuro da produção de alimentos. Exatamente por isso deve ter uma condução técnica, científica, segura e transparente
Uma das razões para que o Brasil esteja entre as lideranças globais de produção agrícola é a abundância de fatores naturalmente favoráveis à tal condição. A extensão territorial, a incidência de luz, as diferentes combinações climáticas dentro de um ambiente tropical, tudo isso torna possível cultivar uma imensidão de plantas e, em alguns casos, colher até três safras dentro do mesmo ano. O “porém” dessa história é que o cenário é tão positivo para as lavouras quanto para o desenvolvimento de plantas daninhas, pragas e doenças. E o desafio se torna ainda maior porque o agro nacional enfrenta certa defasagem em relação ao setor em outros países na corrida pela evolução das ferramentas tecnológicas para proteger as plantações.
O combate às pragas é baseado em manejos estratégicos e na aplicação de defensivos agrícolas, também chamados de pesticidas ou agrotóxicos. Mas enquanto os “inimigos” das lavouras evoluem a cada safra, se adaptando às medidas de controle, o processo para inovação dos instrumentos de defesa é muito demorado e caro.
De acordo com o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), o prazo para o desenvolvimento de uma nova molécula de um defensivo agrícola, desde o primeiro teste até sua chegada ao mercado, vai de 10 a 12 anos. São testadas entre 140 mil e 150 mil moléculas até que se chegue a uma que seja comercialmente viável. E o custo de tudo isso pode alcançar a marca de US$ 286 milhões por molécula.
Não por acaso, esse mercado fica restrito a poucas empresas, grandes corporações que têm condições financeiras, infraestrutura e profissionais para investir nessa jornada científica. E mesmo essas companhias acabam esbarrando em outras limitações, como questões referentes à legislação. Dentro desse prazo para que uma nova molécula de defensivo, mais moderna e eficiente, chegue ao mercado, também entra o tempo necessário para a liberação de seu registro no Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), após validação também da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Esse processo pode ser aprimorado pelo Projeto de Lei nº 6299/2022, que propõe a modernização do sistema de liberação dos defensivos. Por se tratar de um tema que envolve a segurança da saúde humana e do meio ambiente, vem acompanhado de questionamentos e até polêmicas.
Clareza no debate
Os pesticidas, como tantos outros produtos químicos, são tóxicos, e exatamente por isso têm de passar por uma ampla e rigorosa bateria de testes e avaliações e pelo crivo de três órgãos governamentais, acompanhar uma série de recomendações dos fabricantes e serem comercializados mediante receituário técnico. E aqui cabe a frase atribuída a Philippus Aureolus Theophrastus Bombast von Hohenheim, médico suíço do século XVI, conhecido como Paracelso: “A diferença entre o remédio e veneno está na dose”.
Para alguns grupos da sociedade, o PL 6299/2002, já aprovado pela Câmara dos Deputados e aguardando análise do Senado, é uma espécie de passe-livre para o uso de defensivos, representa a liberação desmedida desses produtos. A discussão tem ganhado grande projeção, inclusive na imprensa.
Recentemente, o tema foi pauta do podcast Foco ESG, apresentado pelo jornalista Pablo Valler, no SBT News. O episódio em questão teve a participação de Charton Locks, COO da Produzindo Certo, que debateu o assunto com o cientista político Christian Lohbauer e o pesquisador da Embrapa Meio Ambiente, Robson Barizon.
A necessidade de deixar claros os objetivos da nova legislação foi um dos principais pontos dessa conversa. Para os participantes, além de colocar o Brasil na mesma condição dos demais países, a aprovação de novas moléculas representa a entrada de novos produtos no mercado, com mais eficiência na proteção das lavouras, menos toxicidade e menor impacto ao meio ambiente. Outro ponto crucial é a preservação do equilíbrio entre MAPA, Ibama e Anvisa na decisão do que estará ou não liberado para comercialização.
Charton comentou que os próprios agricultores prezam pela segurança que passa por esse tripé governamental, garantindo que aplicarão em suas lavouras um produto adequado. “Eles moram ou vivem nas fazendas, suas famílias e seus colaboradores estão lá também. Que razão os produtores teriam para querer causar algum problema de saúde às pessoas por quem têm maior afeto, que estão dentro de seu círculo mais próximo?”, questionou. O executivo ainda ressaltou o cuidado com a propriedade. “Qual seria a vontade de criarem uma contaminação no principal, talvez, ativo econômico que eles têm?”
O pesquisador da Embrapa também destacou não haver risco para a perda de protagonismo de Anvisa e Ibama nesse processo. “Está previsto no texto da lei que esses dois órgãos continuam participando do processo regulatório”, afirmou Robson. “Mas não mais centralizando os processos administrativos, que trazem mais morosidade.” Christian comentou que embora a palavra final seja do MAPA, o ministério acatará as recomendações dos demais órgãos sobre qualquer produto. “Se a Anvisa detectar algum problema para a saúde humana, ninguém no MAPA vai confrontá-la”, disse.
Para Robson, tudo isso faz parte do debate público. “E é fundamental, nesse momento, que se esclareça o protagonismo das três instituições em todo o processo”, comentou. O questionamento se faz necessário em qualquer ambiente democrático, o que os participantes dessa mesa-redonda defendem é que todo a discussão em torno da atualização da legislação dos defensivos seja realizada com base em dados técnicos e em ciência, evitando-se distorções.
Artigo assinado pelo presidente do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS), José Otávio Menten, que também é professor sênior da USP/Esalq, traz um claro exemplo dessa relação. O especialista joga luz sobre a diferença entre o Brasil representar o maior mercado global para pesticidas químicos, mas estar bem distante das primeiras posições no ranking dos maiores consumidores. “O consumo deve ser medido pela quantidade de pesticidas utilizados por unidade de área cultivada ou pela quantidade produzida”, escreve Menten. Seguindo esse critério, o País fica em 44° lugar no cálculo por área cultivada e em 58º por tonelada produzida, informa o texto.
Eficiência técnica
O ponto crucial do debate sobre o PL 6922/2002 passa pelo desempenho dos defensivos. A modernização da legislação resultará em maior disponibilidade de produtos mais eficientes, que oferecem melhores resultados com doses menores. Dessa forma, cresce a segurança para as pessoas e o meio ambiente. Pode-se dizer que será uma potencialização do que já vem ocorrendo, pois a cadeia da produção agrícola já vem promovendo uma importante evolução dentro e antes da fazenda.
“Estudos mostram o declínio da toxicidade ao longo do tempo com a evolução da tecnologia e o avanço das restrições regulatórias”, disse Robson. Além dessa evolução promovida pelos fabricantes de defensivos, há um grande impacto das melhorias proporcionadas por todas as inovações tecnológicas que otimizam os processos de aplicação desses insumos.
Na sétima edição da série Vozes Responsáveis, realizada pela Produzindo Certo, o head de Inovação da SLC Agrícola, Frederico Logemann, contou que após adotarem a solução spot spraying para o controle de plantas daninhas, a aplicação de herbicidas passou a ser feita com precisão somente sobre as invasoras. Antes, a pulverização cobria toda a plantação. Em cinco anos, o volume do insumo aplicado nas lavouras foi reduzido em até 80% e a economia passou de R$ 50 milhões.
Charton citou diversas medidas que os agricultores já vêm implantando para aumentar a proteção de suas lavouras, como rotação de cultura e combinação de produtos, com o auxílio profissional especializado, para potencializar o efeito. “Tudo isso porque têm de aproveitar o que está disponível no mercado”, afirmou. “E também têm incorporado os biológicos.” Esse é outro passo já dado pelo agronegócio brasileiro que tende a influenciar ainda mais a questão do uso de insumos químicos, tanto nos debates quanto na prática.
Embora ainda não sejam necessariamente vistos como substitutos aos defensivos químicos, os bioinsumos crescem exponencialmente no mercado brasileiro e no mundo. “Há fazendas construindo usinas de biológicos dentro de sua própria estrutura”, comentou Charton. De acordo com levantamento feito por S&P Global e CropLife Brasil, entre 2018 e 2022, o segmento cresceu 61,2%. O estudo considerou oito culturas (algodão, cana, café, citros, feijão, milho, soja e tomate) analisadas em oito estados (BA, ES, GO, MG, MT, PR, RS e SP).
Na safra 2021/22, o valor do mercado de insumos biológicos no agro chegou a R$ 3,3 bilhões, cifra 219% maior que a da safra anterior. E a estimativa para 2030 é de que chegue a R$ 17 bilhões (considerando uma taxa de crescimento anual em 23%). Outro dado relevante é a taxa média de 28% para adoção de controle biológico na área plantada total no País, estimada em 85,7 milhões de hectares pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). “A gente torce – e a pesquisa está trabalhando nisso – para que sejam eficientes a ponto de uma ou outra molécula química poder ser substituída por uma defesa natural”, disse Charton.