A letra G do tão falado ESG, a governança ainda é incomum no agro, mas tem tudo a ver com produção responsável
É difícil encontrar uma definição única e definitiva sobre governança corporativa, mas é certo considerar que ter estruturas mapeadas para administração, processos formalizados, programas de gestão de pessoas e definição de metas para evoluir em pontos importantes, inclusive socioambientais, são aspectos que melhoram a gestão de qualquer negócio. Nos empreendimentos rurais, as práticas de governança podem ser o elemento fundamental para garantir um crescimento saudável e próspero e levar os produtores a um novo patamar.
“Governança é arrumar a casa”, resume a advogada e consultora de boas práticas no agronegócio Heloysa Furtado em entrevista para o blog da Produzindo Certo. Diretora da Alleg Soluções e Treinamentos Empresariais, ela trabalha diretamente com gestores de empreendimentos rurais para auxiliar a construção e o aprimoramento de suas rotinas administrativas.
“É comum no meio rural a ideia de que o olho do dono engorda o gado. Muitos produtores não contam com os papeis e responsabilidades bem definidos de sua equipe, não trabalham a sucessão familiar. Na pandemia isso ficou muito claro. O administrador pegou Covid-19, precisou se afastar, e o negócio desandou”, exemplifica.
Além disso, questões mais simples como atraso no pagamento de faturas, pagamentos em duplicidade ou registros incorretos no SIAFI, que podem gerar custos como juros, multas e correções, podem ser evitadas com a estruturação de um bom programa de compliance, um dos elementos previstos em práticas de governança. Isso não é mera burocracia. São boas práticas que podem reduzir riscos, melhorar acesso a mercados mais exigentes, diminuir custos e levar pequenos e médios produtores rurais a um novo patamar de gestão, segundo a especialista.
A Produzindo Certo planeja reforçar os aspectos de gestão e governança verificados em seu protocolo e, assim, apoiar os produtores a evoluírem nesse tema. “Queremos melhorar a visibilidade desses aspectos em nosso diagnóstico. Isso permitirá compreender os principais pontos que precisam ser mais bem trabalhados com os produtores”, afirma a CEO da empresa, Aline Locks.
“À medida que isso contribui para demonstrar maior transparência e a execução de boas práticas de gestão e integridade, também pode se tornar uma vantagem competitiva para os membros da plataforma acessarem mercados e meios de financiamento”
Acompanhe a seguir os principais trechos da entrevista com a especialista Heloysa Furtado:
Produzindo Certo: Você pode explicar melhor o que é governança no campo e qual a sua importância?
Heloysa Furtado: Governança é organizar a casa. Queremos desmitificar esse conceito. Tenho uma visão mais macro, incluindo a estruturação da governança em si, programa de compliance, gestão de pessoas e processos.
A falta de estruturação e organização gera muito passivo trabalhista. Por exemplo, os produtores costumam pagar bonificações por safra. Mas isso é feito de maneira mais informal, sem indicadores ou metas estabelecidas, e acaba sendo compreendido como remuneração na hipótese de um processo trabalhista. Preparar a sucessão é outro exemplo de prática prevista em sistemas de governança, um desafio para o agro, em que muitos negócios são familiares.
A gente sabe que os produtores hoje estão muito capacitados, há muitos cursos de gestão. Mas ainda assim, tem um resquício da cultura. Costumo dizer que há o fazendão, em que a ideia é a de que o olho do dono engorda o gado, e outras propriedades que estão em fase de transição, para se tornarem de fato empresas rurais.
PC: Essa é uma questão apenas dos grandes negócios?
Heloysa: Com a pandemia ficou muito claro (a importância da governança). O administrador pegou Covid-19, precisou se afastar, ficar em isolamento, e o negócio desandou.
E não demanda grandes investimentos. Um produtor gasta R$ 15 milhões/ano com maquinário, vai contratar uma consultoria com R$ 15 mil ou R$ 20 mil para dar início a uma governança que vai levá-lo para outro patamar, se abrir para exportação. Penso até em mudar de nome porque falar em compliance e governança assusta!
Na parte de tecnologia já se avançou muito, na socioambiental está avançando. Agora temos esse novo passo. Há muita coisa arcaica, controles ainda feitos em caderno, a mão. Fundos de investimentos querem investir em propriedades que tenham o mínimo de governança, com menores riscos reputacional, financeiro, jurídico.
PC: Por onde o produtor pode começar?
Heloysa: Costumo iniciar com a estruturação, desenhando os papeis e o organograma da fazenda, e definir responsabilidades. Indicar a liderança dentro da fazenda também é bacana. É a formalização da governança, criação de um acordo de cotista, se for necessário, do código de conduta, do regimento interno. Criamos os órgãos de governança, incluindo um comitê gestor, fórum familiar e/ou um conselho de sócios. Tudo documentado.
O resto é prática mesmo. Ao contrário do que muitos podem pensaro processo é muito atrelado ao dia a dia da fazenda.
Ao fazer o alinhamento de papeis na família, por exemplo, provocamos a reflexão se esse sucessor realmente quer estar ali. Faço esse trabalho em parceria com uma psicóloga. Despertamos nos familiares o sentimento de pertencer.
No programa de premiação por resultados, desenvolvemos as metas em conjunto com os funcionários. Por exemplo, a fazenda está com um custo muito alto com aplicação de herbicida, o que podemos fazer para melhorar? Faz um programa de melhoria, traz o empregado para desenhar em conjunto. Eles se sentem donos.
Há treinamentos também para aplicar tudo isso, deixar claro até onde uma pessoa pode ir ou não. Se ocorre um acidente, para quem ela precisa se reportar?
PC: Quais os principais benefícios que esse processo pode trazer?
Heloysa: A governança passa uma visão de credibilidade, de maior estrutura de investimento. Isso pode influenciar na melhora de uma linha de crédito ou dar acesso a outras instituições financeiras que não apenas os bancões. O outro ponto é a ótica do consumidor. Ele quer saber cada vez mais sobre os detalhes da origem dos produtos, se há riscos de vínculo com trabalho escravo, por exemplo. Quando o produtor está estruturado, consegue fazer um plano de contingência, tem noção dos próprios números, consegue fazer uma prestação de contas com transparência mesmo em uma situação de paralização, como no caso da Covid-19.
PC: Governança e produção responsável tem tudo a ver?
Heloysa: No ESG (sigla em inglês para meio ambiente, social e governança), a gente já auxilia muito no E (de environment, meio ambiente) e no S (de social), e agora vem fazendo a parte do G. Deixar um agro legal, redondo. O produtor precisa ter responsabilidade social e ambiental, mas não também não pode ter um rombo no seu balancete ou conflito entre os sócios.